14.10.10


Contemporâneo

Segundo Gombrich(1950) não sabemos como a arte começou tanto quanto não sabemos quando a linguagem começou. Se a intenção da arte foi despertada pelo olhar que se apropria do objeto natural como elemento estético, num conceito primitivo de ready-made, ou se foi pela aplicação de um gesto a uma mídia, como um galho a riscar o chão, é algo que apenas podemos supor. Muito da experiência humana no passado chega até nós por meio da arte, ainda que em uma percepção atemporal do significado das formas e objetos. No entanto, o olhar com que observamos do passado, e atribuímos qualidade, valor técnico e estético em elementos arquitetônicos, esculturas, pinturas, cerâmicas, dentre outros, inseridos na vida social, não é o mesmo com que olhamos o presente, e observamos os mesmos valores na produção material do que vou chamar aqui de indústria cultural, com a qual a arte, na melhor das hipóteses, mantém um diálogo continuo.
Lembro de quando estava em uma exposição, “O Romantismo”, no Masp, por volta de abril de 2010, e uma jovem comentou, que estava com vontade de lamber o quadro. No mesmo museu pouco tempo antes, a exposição de Vick Muniz, ao meu ver, discursava sobre uma fugacidade da imagem na modernidade, e a participação da imaginação na criação de significado, em objetos desprovidos de gerarem uma resposta mais visceral, mas sim apelando para uma operação da percepção que beira um jogo lúdico.
A palavra “arte” pode ser uma idéia abstrata e vazia de significado, que tem arraigada em si um sentido que varia segundo o contexto ideológico em que é empregada. As pessoas têm uma idéia particular do que é “arte” e do que pode ser “arte”, e baseadas em uma experiência que mistura algumas vezes moral e estética. A maioria consegue defender seu ponto de vista, às vezes por reverência à técnica ou simplesmente movida por resposta emotiva. A própria idéia de uma “História da Arte” tem suas limitações no que se aplica ao contemporâneo, se vista estritamente em uma esfera positivista, por superestimar o fato, em desmerecimento da causa, segundo Wollheim(1987), que propõe uma visão mais voltada a compreensão da arte como fenômeno social, apelando para um pensamento estruturalista. O que joga, na minha opinião, uma luz mais reveladora de que a arte é produto de uma demanda social manifesta pelo sujeito, que chamamos de artista. Retomando Gombrinch, “não há na verdade algo como a Arte. Há apenas artistas”.
Estes exemplos de eventos ocorridos no Masp servirão para que construa aqui a idéia dos extremos que observo na produção contemporânea: a que depende da existência do objeto em matéria tangível, e a sugestão imaginativa como objeto, uma imaterialidade de natureza ilusionista de atribuição de significado ao evento. Não me refiro aqui a imaterialidade sugerida por Wollhem(1968) em sua discussão sobre a arte e seus objetos, mas a algo que tem na própria experimentação tanto o significante quanto o significado, reduzindo o que se consideraria o objeto como indutor da experiência. Num exemplo simples, um caleidoscópio.
O quanto a moça que quis lamber o quadro estava como que desarmada e aberta à obra, e o quanto o público de Muniz estava condicionado pela informação prévia? É a obra de arte hoje um objeto com papel ilustrativo de uma idéia que pode ser verbalizada? A arte, como numa idéia de práxis, deve falar por si? A produção contemporânea consegue dar conta de criar obras que detenham em si um significado ou sentido que independa de um discurso anexado? Estas questões parecem pertinentes, quando pensamos que a ilusão tem de ser induzida. O sujeito deve participar se entregando ao jogo imaginativo, caso contrário toda a exposição de Muniz é reduzida a um apanhado peculiar de fotografias, enquanto o quadro carregado de tinta independerá de um discurso para ser percebido, mesmo que esvaziado da aura atribuída pelo museu.
Qual a natureza da arte contemporânea? Ela está condicionada por um sistema que se alimenta de tudo para transformar em capital? Pode o artista que se mantem na repetição de “fórmulas que vendem” ser considerado um artista? Não seria essa atitude algo tão condicionado quanto a arte industrial, como expressa por Matisse? A arte se tornou um sistemas complexo, pulverizado na sociedade, e que pode ser reconhecida em bens de consumo produzidos em série tanto quanto naquilo que se convencionou chamar de obra de arte. No entanto, a figura do artista parece perdida, ou diluída, dentro das demandas do capital. Talvez seja necessária a distância atribuída pelo tempo para que possamos entender como uma organicidade a produção contemporânea, pois toda ela é produzida dentro de um mesmo contexto, e revela suas faces ocultas. A figura do artista como uma entidade sensível capaz de representar o seu tempo não pode ser perdida, sob pena de se vulgarizar por completo a arte, rebaixando-a à simples técnica, artezanato.
O processo de ressignificação imposto pelo capital atinge o próprio entendimento do que é arte. Significados e valores passam a ter transito entre signos, objetos materiais e imateriais gerados e alimentados pela indústria cultural, a qual também integram museus, galerias e publicações. É papel da arte revelar o invisível, aquilo que permanece sem forma e sem nome. Sentimentos que chegam a ser difíceis de descrever quando despertos podem ser evocados, algo que a sociedade ainda tem de assimilar é trazido à tona. As ruínas de Scarlet Kid (2008), imagem na abertura desse artigo, tela saturada de matéria, do chinês Chen Bo(1973-) são de metal e plástico. São ruínas de nossos dias que não nos causam a mesma resposta das ruínas inseridas em uma cena bucólica de um quadro barroco holandês, ainda que ambas desejem evocar o abandono de algo. Chen Bo parece nos falar do abandono do humano. Ainda assim, algo dessa natureza, pode ser vendido por telefone apenas pela indicação de marchant, sem que um investidor de arte ao menos veja a tela.